10.3.09


Anatomia de um rio


Às margens desse rio asfixiado,
habitado pela merda expelida das casas
e o ácido excedente das indústrias,
homens pararam por um instante –
testemunharam seus reflexos no espelho
antes de seguir viagem; outros
velaram toda uma noite atrás de um peixe.

Nessas águas espessas,
violentadas pelo óleo das auto-estradas,
oprimidas pelo caldo dos bueiros,
mulheres lavaram a roupa e as mágoas;
outras se aliaram ao corpo do rio
para ajudar as flores a resistirem ao inverno
e os tomates a se rebelarem contra a seca.

Às margens desse rio viciado,
picado pela agulha dos hospitais,
assaltado pela indigestão dos restaurantes,
meninos caçaram animais que por ali se aventuravam
ou simplesmente ficaram ao vento –
que não tinha o cheiro senão do campo que percorria.

Rafael Nolli
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densidade

toda a manhã procurei
esconder dos teus olhos
esse peso na alma,
essa inquietude,
essa fome.

é pouca coisa ou, quase nada
um vago temor,
um medo que me espalma
sem pressa
apesar da calma
disfarço,
deslizo.


me escondo,
dentro da folha branca
procurando
sílabas,
palavras,
salvação
nesse poema que me entala

te engano,
te beijo
e sigo

esforço tenso
em tentar ser
densamente leve,
levemente densa

Rosa Cardoso
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A Travessia

Matem-me amanhã
e serei novamente um cadáver agradecido
com um sorriso nos lábios
e a tranqüila serenidade
daqueles que não souberam que partiram,
dos que se foram sem se despedir
(lançados ao espaço por desproporcionais choques de massas)
enquanto o corpo descrevia uma parábola descendente
parando no meio do asfalto,
meio morto
(morte de cachorro louco, dia frio, na beira de um meio-fio)
Nós,
os que sempre se vão na hora errada
não queremos mais mundos obscuros
onde as lágrimas não podem passear pelos rostos
e as dores não podem ser acariciadas
à luz do dia
Todos os dias
Por conta dessa noite de virgens loucas
a poesia nada mais é que um momento trágico e mágico
eternizado por uma pena perdida
(no fel da loucura embebida)
servida em cálices altos
aos que se embebedavam
no festim da vida
E por conta de toda esta embriaguez
é que viramos a cidade de pernas pro ar,
somente para encontrar
um par de pernas
cruzadas
Os que vierem depois disso quase nada entenderão
(farão falsos discursos em monocórdios maquinados)
mas o mundo muda de repente
(à revelia)
e a travessia pode se dar à qualquer hora
confirmando assim a única certeza da vida
Meu presente para o futuro é um passado sem glórias
Ainda agarro a felicidade pelos cabelos
e a beijo sem volúpia e sem vontade
apenas para ter o prazer de lhe cravar os beiços

Cristiano Deveras
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Arrebatamento Íntimo

A neblina recortada pelo verde
simula incêndio na mata da serra,
meu corpo lúbrico no seu aferra,

musgos descem as encostas
do desejo ocultado nos corais,
lambem-me cavalos marinhos,
verde-folha – bananais,

gritos mudos ressoam – corais
nas cordas dos cavaquinhos
onde minhas cobiças urram cantos tribais.

Maria Júlia Pontes
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é a solidão
que me carrega
no dorso da palavra
até a beirada do obscuro

onde me atiro
porque me assoma
desde sempre a vertigem
e me assombra mais o medo
do que acabar

e é na queda
que o hálito do abismo
aviventa minhas asas
de inventora do impossível

é a solidão
que empilha silêncios
até emparedar meu grito
e eu, simbionte,
tomo sempre num hausto
o ultimo fôlego
e cavo frestas a lápis e caneta
até eclodir o verso
onde respiro

Iriene Borges
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A fábula do vidro e do tijolo
pela vidraça vê-se o muro
vê-se furos
no paladar!

não há o que se esconda
e se oponha
à dor de fronha
e a amores de chafariz

é tudo tão caro
que o metal não pode pagar
beijara teus tijolos
e ainda trazia na língua
os esporos alheios

enganando-se cotidiano
e os olhos secos se fecham
na esperança da chuva
da fonte na praça central.

Larissa Marques

12.1.09

bagaceira #17


Ninguém partiu


Triste
De uma tristeza que não tem fim
De uma saudade que vem chegando
Tudo de novo e volta a certeza
De saber que não volta não
Você que partiu sem dizer adeus.
.
Triste
De uma tristeza que não tem fim
Diga à saudade que vem chegando
Que tudo de novo não é certeza
Ninguém partiu e ninguém sofreu
Foi só você que quiz me ver assim...


Leonardo Quintela
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Segredos da Monarquia


Escondo-me sob o manto de rainha
Mas quero o súdito mais rude da corte
A penetrar meu ventre ordinário de mulher
Quero gritos de plebéias
Transpiração de rameiras
Gemidos de cortesãs
Que façam ecoar em meu ser as trombetas dos cavaleiros
A guerrear nas savanas do meu reino
Quero ser devorada como faisões de banquetes reais
Sobre colchões de feno
Nos currais

Dou meu cetro de poder
A quem, mesmo de soslaio possa
Retirar-me do mediterrâneo inferno
Que é viver
Sem uma centelha de prazer...

Caroline Schneider

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O Raul Cortês


nem sei de quando
vem
nem por que
vem
ou veio, ou véio, gol
veia
ou velocino da preta
véia
sem dente de
ouro
de tolo
amassa bolo
de musgo de
aveia
quac!
de olhos de
baleia
de óleos de
rícino
rico
oco
rente

o grilo falante
besuntado de hidratante
lá do cume do hidrante
profeta, profetiza
precoce, preconiza
exorbitante, exorbita
exegeta, exige a nota
cheio de banca e de pose
distribui amiúde e
de graça, conselhos de graça
sábio artrópode sapiente

sê cortês!
se és o boi de piranha
se és a bola da vez
se és o bode, a rês, o cabrito montês
se o salário não chega ao meio do mês
se o chefe dá sempre razão ao freguês
se te vendem paraguaio por escocês
se a patroa te troca pelo rico burguês
se sonhas recorrentes sonhos de embriaguez
se dois mais dois sempre dá três
se o cachorro do vizinho comeu teu gato siamês
se à tua volta se agiganta a humana pequenez
se só o que vês é cega estupidez
sê cortês!

mandou ver e mandou bem
a boa e redonda letra
que somente iletrados
e letrados sem letra
e letrados não bestas
entendem e compreendem

na birosca do Tião
pedi uma com limão
outra e mais outra
e mais outra e mais

pus rima com cuscuz
avestruz e jesus
eu vi a luz! (porque luz
tem que rimar com jesus
assim como dor deve rimar com amor)

ô tião, sangue bom,
manda mais uma, então!
senti próximo o momento
de praticar o ensinamento
veio vindo lá de baixo
o indomável furacão
poderia despejá-lo
no chão, banheiro, balcão
mas não era de bom tom
jorrei volumoso e terno
no enternado
na calça de linho
na camisa de seda
no sapato de crocodilo
desalinhado e irado
pretendeu racionalizar o desagrado
célere, desarmei o desalmado
desacelerei o celerado:
se quiseres, podes me bater
mereço ser castigado
dês a primeira porrada
se não tiveres pecado
o soco veio firme, forte, pungente
primeiro, a inconsciência
o regozijo, a seguir
constatação, revelação:
cortês fui - me dei bem - aleluia!
vi o túnel negro, vi a luz
Vi o sempiterno Jesus!
(reforço: luz, obrigatoriamente, rima com Jesus)

Carlos Cruz
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ainda me sobram
ovários estéreis
e palavras idem
não tenho mais artifícios para
(pro) criação
vagina e fala secas
rachadas no ventre
em inanição
não há cura para
(des) inspiração.

Larissa Marques

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COMERCIAIS DE METRALHADORA

Fábula segunda – esofagite

Todas as estatísticas sorriem para mim:
sou um entre as migalhas moídas pelo trânsito.

Meu nome corre entre os que matam
por gosto ou dinheiro –
capa de jornal sensacionalista, de ontem,
me explica como serei vítima de latrocínio.

Um merda sorri no algodão ariano de minha t-shirt,
e é vermelho o papel em que escrevo,
vermelhos os livros de história,
menstruados na estante.

Falo de amor contigo
em meu celular movido a lithium:
você me conta que nosso filho irá se chamar Citotec.

Somos felizes para sempre.


Rafael Nolli

* Do livro Comerciais de Metralhadora

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Les autres

Ils ne savant pas s’oublier de moi
Ils rient et bâillent tout le temps
Ils adorent se perdre dans le temps
Ils jettent ses desires sur moi
Ils croient que je ne comprends pas
Ils observent mon alluse et rient
Ils ne savant pas que je ne peux pas


Túlio Henrique Pereira
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Obedeça seu limite

Sapatos sujos, idéias nítidas e conversas sobre o silêncio são momentos que fazem parte da nossa trajetória.
Quem nunca pisou onde não previa, onde não queria? Quem nunca imaginou claramente que podia, e quando foi ver, era totalmente inviável o que havia imaginado? Quem nunca teve uma idéia brilhante, mas que de brilhante mesmo só havia o sorriso de satisfação com o gozo de ter pensando algo novo, pois quando foi transcrever para o papel o projeto foi abortado, porque sofria de má formação. Quem nunca parou para se perguntar o porquê do silêncio de alguém, o porquê do nosso próprio silêncio? Quem nunca se incomodou com a falta de palavras?
O filósofo francês Jean-Paul Sartre afirma a contingência do mundo, ou seja, para ele, o ser humano é pura existência, a essência procuramos realizar a partir do nosso existir. E existência implica em ser-humano-no-mundo, sendo assim, o filósofo nos oferece a idéia da finitude.
Quando falamos em finitude, a tendência é a associação com coisas infelizes e tristes, contanto, esquecemos que esta é a oportunidade que temos de existir, é a minha existência agora que me faz escrever esse texto e a sua existência que te faz ler este texto em meio a inúmeras possibilidades no mundo. O ser humano quer possuir tudo, até mesmo a sua própria vida, a ponto de querer eternizá-la em si mesmo. A vida é um curso e todas as vezes que paramos para tentar prolongar para além da nossa própria existência paramos esse curso, paramos de realizar a nossa essência.
“A liberdade que se revela na angústia caracteriza-se pela existência do nada que se insinua entre os motivos e o ato. Não é porque sou livre que meu ato escapa à determinação dos motivos, mas, ao contrário, a estrutura ineficiente dos motivos é que condiciona a minha liberdade”. (Sartre)
É dentro de um número de possibilidades que podemos fazer escolhas, mas, no entanto, entre as muitas escolhas que fazemos há espaço para sucessos e fracassos. O fracasso talvez faça parte desta estrutura ineficiente dos motivos que nos proporciona a liberdade de mudar, de fazer novas escolhas, afinal, se tudo fosse apenas sucesso, o sucesso não poderia existir. Para comemorar os acertos é preciso ter errado um dia, para falar as palavras mais bonitas, é preciso ter feito silêncio, é preciso experimentar a vida como fundamento da nossa própria essência.
Tradução do original de "Os outros" do livro "O observador do mundo finito".

Freddie Fernandes